À prova de morte

“À prova de morte”-“Death Proof”, Estados Unidos, 2007

Direção: Quentin Tarantino

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Jovens pés femininos, com pulseirinha no tornozelo, descansam sobre o painel de um carro que corre por uma estrada ao som de um rock animado.
“À prova de morte” abre com um dos fetiches do diretor Quentin Tarantino, que também produz, dirige a fotografia e seleciona as músicas da trilha sonora, além de atuar em uma ponta.
Claro que não é diversão para uma platéia convencional. Mas, quem conhece e gosta do estilo desse diretor, vai se deliciar com todos os clichês “a la Tarantino”que estão em “À prova de morte”, filme de 2007 que fazia a segunda parte de uma sessão dupla que começava com “Planeta Terror”de Roberto Rodrigues. Os diretores pensaram em homenagear as sessões de cinema com dois filmes dos “drive-in” americanos dos anos 60 e 70. Nelas passavam os filmes B de baixo orçamento e com muita violência, sexo, terror e perseguições em carros “envenenados”.
O projeto não fez sucesso nos Estados Unidos e apesar de ter sido exibido na Mostra de São Paulo e no Festival do Rio em 2007, só agora “À prova de morte” chega ao nosso circuito.
Propositalmente, o filme apresenta borrões, ranhuras e aqueles cortes mal feitos quando se passava de um rolo de filme para outro, como acontecia antigamente.Tudo produzido com tecnologia digital para criar o ar “retrô” dos anos 70.
O forte de “À prova de morte” não é a história. Já no “trailler” conta tudo: Stuntman Mike, um ex-dublê cabotino e meio ridículo com seu topete e casaco prateado, usa seu carro, um Chevy Nova 1970, com uma caveira pintada no capô, para atrair belas garotas que vão nutrir seus instintos assassinos. Elas morrem com as manobras violentas que faz o dublê porque só o banco do motorista é “death proof”, protegido e reforçado, à prova de morte. Mas isso ele só conta quando a aterrorizada garota já está sentada no outro banco.
Para o psicopata sanguinário, Stuntman Mike, seu carro é como que extensão de seu corpo impotente, para conseguir orgasmos letais. Mas haverá castigo surpresa.
Na primeira parte do filme, garotas safadinhas que falam e riem contando umas às outras seus casos amorosos, são excrutinadas pela câmara “voyeur” de Tarantino que explora a bela anatomia delas. “Close” em pernas, peitos e traseiros em shortinhos apertados. Estão naquele carro, que corre pela estrada, Jungle Julia, “a DJ mais sexy de Austin,Texas” (Sydney Tamiia Poitier, filha do ator Sidney Poitier) e suas amigas Shanna ( Jordan Lad) e Arlene ( Vanessa Ferlino). Elas vão ao bar do Warren (Quentin Tarantino se divertindo muito), onde bebem e dançam antes de partir para um fim de semana só de garotas.
Uma série de diálogos picantes e de duplo sentido esquentam a temperatura do bar para onde vai o dublê assassino atrás das garotas. E o “clímax” dessa excitação toda é a “lap dance”, dança erótica de Vanessa Ferlino para um participante Stuntman Mike (Kurt Russell, ótimo no papel). Quentíssimo.
A cena que encerra a primeira parte do filme, uma espetacular colisão, é mostrada quatro vezes porque é filmada a partir do ponto de vista de cada uma das quatro garotas que morrem em meio a latas retorcidas, vidro quebrado, explosões e fogo, com direito até a uma perna decepada no meio da estrada. Muito sangue, claro.
Graças a um xerife caipira que entende tudo o que aconteceu (referência a “Fargo” dos irmãos Cohen), o dublê assassino tem que mudar de estado e vamos para Lebanon, Tennessee, onde acontece a segunda parte do filme.
E se na primeira metade estamos na noite, com muito néon e bebida, na segunda parte a luz do sol ilumina a cena com cores vibrantes. As garotas que o psicopata escolhe dessa vez também são bonitas mas poderosas. E ele não sabe.
Este é um tema recorrente nos filmes de Tarantino que já vimos, por exemplo, em “Kill Bill” 1 e 2 (2003 e 2004), com Umma Thurman e Pam Grier em “Jackie Brown”( 1997).
Como se para vingar as outras quatro, em um carro branco desafiam o carro preto do assassino. “Quem com ferro fere…com ferro será ferido”, diz o ditado popular.
Quentin Tarantino, que sabe como ninguém brincar no cinema, em “À prova de morte” mostra que, mesmo quando faz de propósito um filme ruim, consegue ser divertido e original. Coisa fácil para ele.

O Profeta

"O Profeta" - “Un prophète”, França/ Itália, 2009 Elenco: Tahar Rahim, Niels Arestrup, Adel Bencherif, Hichem Yacoubi, Reda Kateb, Jean-Philippe Ricci Produção: Lauranne Bourrachot, Martine Cassinelli, Marco Cherqui Roteiro: Thomas Bidegain, Jacques Audiard Fotografia: Stéphane Fontaine Trilha Sonora: Alexandre Desplat Classificação: 12 anos

Direção: Jacques Audiard

 

A tela é escura. Vozes se entrecortam. Os letreiros aparecem em amarelo. Alguém reclama das algemas em seu pulso. Sentimos, no escuro, que o medo é o melhor aliado da sobrevivência.

Nesse primeiro impacto já se anuncia a saga do anti-herói Malik, um menino francês de origem árabe em Paris, que sai do reformatório e vai direto para a prisão cumprir pena de seis anos porque ficou adulto. Passa pela “cidade das luzes” no breu de um carro de polícia.

Pouco ou nada sabemos desse garoto que não conseguimos ver nas imagens indistintas e tumultuadas que abrem o filme “O profeta”. Mas o mais importante é o que se percebe desde o início: sua história lê-se no corpo magro marcado por cicatrizes profundas. Foi muito castigado.

Nada possue, a não ser uma nota de 500 euros que esconde com cuidado e da qual é despojado na entrada da cadeia. Revistado em todos os buracos de seu corpo, onde se esconde a sua alma?

Talvez seja esse o principal fio condutor para entender Malik: ele procura saber quem é. Solitário, não tem amigos nem identidade. Mas, precisa ter, para sobreviver naquele mundo onde mandam os chefes das máfias, corsos e árabes, que orquestram o crime organizado de dentro da cadeia.

Tarefa árdua para quem não sabe responder às perguntas do funcionário da prisão:

– Qual a sua língua materna?

Ele balbucia algo como “não tenho”…”reformatório”… “francês”…”árabe”…

-Mas se você preencheu a sua ficha de modo incompleto, você estudou um pouco, não?

-Até os 11 anos…

Ele é semi-analfabeto. Aliás pode até conhecer algumas letras mas nada faz muito sentido para ele. Ele até aprende a ler e um ofício na prisão. Mas é muito pouco.

O diretor Jacques Audiard conta essa história com cores rebaixadas e cortes abruptos. A ação não é interrompida por explicações. Cabe ao espectador acompanhar a descida aos infernos de Malik (Tahar Rahim).

Os modelos que ele segue na prisão, para colar-se neles porque não sabe o quê fazer, são os disponíveis. Para quem precisa de pai, ele encontra um patrão perverso, o corso Luciani (Niels Arestrup):

– “Acha que vai durar aqui sem proteção? Você vai fazer o que eu mando. Você vai matar o árabe. Você consegue. Vamos ajudar. Mas saiba de uma coisa. Se você não matá-lo, sou eu que mato você.”

Na cadeia, a desgraçadamente famosa “escola do crime”, em busca de proteção, apego, identidade, Malik vai conhecer o mundo das sombras dentro dele. E vai ter relances do que poderia ter sido, se o destino não o colocasse em situações-limite nas quais as reações são às cegas e o medo da morte rege a mente.

Malik se apega a seus demônios internos na falta de uma tábua de salvação. Mas ele já afundou e não sabe.

Há momentos de lirismo e quase felicidade quando Malik voa de avião pela primeira vez em sua vida, quando conhece o mar ou nina o bebê, filho do amigo Ryad. Mas ainda é muito pouco.

Malik é a presa no mar de lama e sangue onde afundou. Por isso percebe o perigo que correm as gazelas na estrada que corta o bosque e por onde transita um carro a toda velocidade. Massacre.

-Como adivinhou Malik? Você é profeta?

E na cena final somos nós que, com horror, percebemos o perigo que ronda um Malik que, finalmente liberto da prisão, acha que se encontrou e que vai ter e dar amor.

Alguém canta de um modo sarcástico a canção “Mack the Knife” da “Ópera dos três vinténs” de Brecht que fala de um tubarão que esconde os dentes…

“O profeta” ganhou o “Grand Prix” do Festival de Cannes em 2009 e confirmou sua carreira de sucesso com nove Césars, o Oscar francês, entre os quais o de melhor filme, melhor ator para Tahar Rahim, melhor ator coadjuvante para Niels Arestup, melhor argumento original e melhor cenografia.

É um filme duro, difícil de ver mas obrigatório para quem quer pensar as questões humanas em boa companhia.