A Origem

“A Origem”- “Inception”, Estados Unidos/ Reino Unido, 2010

Direção: Christopher Nolan

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Preparem-se para uma viagem vertiginosa.

Um homem é jogado na praia por ondas de um mar espumante. Seu rosto é tenso. Ele parece desmaiar na água e vê um menino e uma menina de costas para ele. Em sonho?

E a partir daí você não vai desgrudar os olhos da tela.

Cansaço? Nem pensar. Porque você vai ter que prestar muita atenção nas próximas duas horas e meia. E, mesmo assim, tem gente que precisa voltar e ver de novo, de tão complexa e intrigante é a trama. Porque tudo é misterioso e as cenas se sucedem com muita rapidez.

Um quebra-cabeças monumental vai ser montado peça por peça.

A sensação de sermos sugados para dentro de uma história é a experiência que fica depois de assistirmos ao filme “A Origem”, “Inception” no original, que pode ser melhor traduzido por “Inserção”.

As sinopses descrevem o personagem Dom Cobbs, vivido por Leonardo Di Caprio, como um ladrão de mentes que é um fugitivo. Ele consegue dormir, entrar no sonho de uma outra pessoa e roubar uma ideia. Um “hacker”mental.

Pois bem. Um novo desafio é apresentado a Cobbs. Um empresário japonês muito poderoso quer que ele implante uma idéia na cabeça de um herdeiro cujo pai está morrendo e é concorrente dele.

Para conseguir isso, algo que parece impossível aos olhos do japonês, Cobbs começa a arregimentar pessoas para ajudá-lo nessa missão (Arthur é Joseph Gordon-Levitt, Ariadne é Ellen Paige, Eames é Tom Hardy e Yusef é Dileep Rao).

E Cobbs parece saber fazer a tal inserção. Vagamente nos damos conta de que ele diz já ter feito isso no passado.Os demônios vão ser enfrentados novamente (Mal, personagem de Marion Cotillard).

E começa uma ação estonteante na qual Cobbs é sempre alvo de perseguidores surgidos de não sei onde.

Efeitos visuais espetaculares desafiam a nossa própria mente e ajudam a criar o estranhamento peculiar à narrativa que nos faz prestar atenção ao irrelevante.

Um sonho dentro de um sonho dentro de um sonho dentro de um sonho…

Eu diria que não estamos no universo de sonhos que foram descritos por Freud em seu livro “A interpretação dos sonhos” como “os protetores do sono”. Construídos com os “restos do dia” às vezes são lembrados pelo sonhador e podem ajudar em uma terapia psicanalítica através de uma linguagem a ser decifrada pelo paciente e seu terapeuta.

Talvez se pareçam mais com delírios essas cenas que arrastam Cobbs e seu time para quatro diferentes níveis de acontecimentos sonhados em grupo. Tudo sempre muito perigoso…

A melhor imagem visual para o que se passa com Cobbs parece ser o desenho feito pela “arquiteta” Ariadne: um circulo envolvendo outros inúmeros círculos. Um labirinto circular de onde só se sai pulando para outra dimensão, para cair em outro circulo e assim por diante, “ad infinitum”. Seria uma alusão à mitológica Ariadne e seu fio que ajuda o herói a matar o monstro e sair do labirinto vitorioso?

Ou ainda: enormes espelhos face a face multiplicam ao infinito a imagem de Cobbs e Ariadne, até que ela arrebenta um deles e passa através para um novo espaço. É a “Alice” de Lewis Carrol vista por Tim Robbins?

Sim. Porque aqui e ali podemos reconhecer citações de outros filmes e homenagens a outros diretores como Kubrick de “2001- Uma Odisseia no Espaço” (cenas de levitação no hotel sem gravidade como uma nave espacial e a sequência final da viagem no tempo), Orson Wells (o catavento é “Rosebud” do “Cidadão Kane”) ou ainda os filmes de James Bond e “A Ilha”no qual Leonardo Di Caprio foi dirigido pelo mestre Martin Scorcese.

“A Origem” é um filme fascinante e o diretor Christopher Nolan conta que ficou por dez anos escrevendo o roteiro:

“Queria fazer um filme de ação, num mundo reconhecível, mas que pedisse ao público para entrar na viagem, desde o começo”, diz ele.

E essa é a originalidade do roteiro que nos força a seguir os detalhes cada vez mais intrigantes da história na tela. Somos obrigados a acompanhar Cobbs em sua fuga da realidade insuportável. Uma empatia forçada pela narrativa instala-se entre nós e o protagonista surtado.

Porque sabem os estudiosos da mente humana que, na tentativa de fugir de uma realidade dolorosa, a pessoa tenta criar um novo mundo, a neo realidade da loucura. Parece que é isso que acontece aqui porque tudo indica que Cobbs sofreu uma perda de modo terrível e se sente culpado. Seu luto não pode ser vivido porque ele foge da dor através das distrações rocambolescas criadas por sua própria mente.

Mas essa maneira de distrair-se parece tornar-se ainda mais dolorosa que o enfrentamento da verdade. Então, no fim do filme, Cobbs, apesar de quase cair na tentação da roda-viva de suas lembranças martirizantes, volta à vida, permite-se o perdão e o esquecimento.

Se bem que advirto que essa é só uma das muitas maneiras de se entender esse filme. Para cada cabeça uma sentença? Pode ser. Talvez a ambiguidade esteja nos planos do diretor que instiga o espectador a pensar.

Para mim a lição que fica é a de aprendermos que a pior realidade será sempre melhor que o melhor dos sonhos. Porque é acordado que podemos agir, tentando mudar a realidade ou então aceitá-la, quando não tem remédio e partir para a vida, apesar de tudo.

Vincere

“Vincere”, Itália, 2009

Direção: Marco Bellocchio

Desde as primeiras cenas, o diretor, Marco Bellocchio, aos 70 anos, impressiona. Mostra um fanfarrão que desafia Deus e uma mulher extasiada perante esse homem de gestos teatrais e olhar escuro. Tudo está ali. Os elementos da tragédia se apresentam com simplicidade magistral.

“Vincere”, baseado no livro “O filho secreto do Duce” de Pieroni, com roteiro assinado pelo próprio Bellocchio e Daniela Ceselli, conta um episódio desconhecido da história da Itália pela voz de uma mulher que foi riscada da história oficial. Ida Dalser, a primeira mulher de Benito Mussolini e seu filho, vão ser cruelmente destituídos de liberdade e condenados a uma morte em vida, ambos trancados em manicômios, onde morreram.

E ela acalentara tantos sonhos… Chegara a vender tudo o que tinha, para ajudar o homem que adorava a fundar o jornal “Il Poppolo d’Italia”, embrião do Partido Fascista.

Na cama com ele, seus olhos fechados de amor, não viam os dele, abertos, procurando outro êxtase em fúria contida. Casam-se em 1914 e ela tem um filho, reconhecido pelo pai (o ator Filippo Timi faz os dois papéis com intensidade feroz).

Quando estoura a Primeira Grande Guerra, ele se alista e ela só vai reencontrá-lo em uma cama de hospital, ferido, assistido pela mulher Rachele (Michela Cescon), por quem fora preterida.

E aqui começa um calvário que Bellocchio filma de maneira empática e solene.

Ida Dalser (Giovanna Mezzogiorno, belíssima e excelente atriz) nunca aceitou deixar de ser a mulher do Duce e mãe de seu primeiro filho, apesar de ter todos os documentos dessa união destruídos pelos fascistas. Calada de forma brutal, ela não se deixa abater. Proclama alto e bom som que ela é a verdadeira mulher do homem que todas as italianas queriam.

Diz Bellocchio:

“Essa mulher aceitou a própria destruição. Mas não foi por loucura. Ela escolheu a rebelião absoluta, o que prova uma coragem extrema.”

Mas essa coragem torna-se a obsessão de uma vida.

Após o episódio do hospital, no qual ela encontra a mulher que seria a esposa oficial até o fim, é no cinema que Ida e nós, espectadores, vamos vendo as imagens reais, em preto e branco, da ascensão de Mussolini, não mais um ator, mas ele mesmo. As imagens das notícias passadas nos cinemas da época impactam e mostram como Bellocchio é um mestre da narrativa.

Aliás o diretor usa o cinema dentro do filme com sensibilidade. Em uma passagem, afastada do filho, Ida assiste a “The Kid” de Charles Chaplin. Sua dor, identificada à dramaticidade da dupla separada na tela, emociona. O psiquiatra que tenta ajudá-la no manicômio, assiste ao seu desespero e alude aos tempos difíceis que todos viviam sob o fascismo. É preciso ser ator e suportar a humilhação para sobreviver.

Mas Ida não sabe ser razoável…Ela tem um lado Medéia que a empurra para a tragédia.

Eis que uma mulher representa uma nação: a Itália busca um “Salvador”. Benito Mussolini ascende à sua sacada em Roma onde discursa socando o ar, mãos na cintura e “rictus” facial de um possuído, para o povo que o aclama. Ele grita: “E vinceremo!”

Mas tanto a mulher quanto a nação vão passar do amor enlouquecido à decepção e ao ódio.

Marco Bellocchio já mostrou na tela a loucura das Brigadas Vermelhas em “Bom Dia, Noite” (2003) que trata do seqüestro e assassinato de Aldo Moro em 1978.

Em “Vincere” expõe a loucura do fascismo, mostrando como sua ideologia de extrema direita faz Mussolini aliar-se a Hitler e jogar a Itália em uma guerra da qual o país sai combalido.

Tanto na vida privada como na pública, Mussolini foi o algoz onipotente, obcecado pela vitória a qualquer preço.

O mundo não pode esquecer essa história cruel de fanatismo e impiedade. “Vincere”, com grande arte, cumpre esse papel de nos fazer lembrar das conseqüências arrasadoras da tirania no poder.