Um doce olhar

“Bal”, Turquia/ Alemanha, 2010

Direção: Semih Kapanoglu

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“Bal” quer dizer “mel” em turco. E é um filme que precisa ser descoberto pelo espectador.
Aparentemente simples, sem muitos acontecimentos, parece contar apenas a história de um menino que não fala, gagueja muito quando lê e preocupa a mãe, plantadora de chá (Tulin Ozen). O pai, Yakup (Erdal Besikcioglu) é apicultor e a família muçulmana mora em uma aldeia perdida no norte da Turquia, região montanhosa e coberta de florestas.
Mas, se você se deixar penetrar pelo filme, verá que ele tem muitos caminhos como a floresta onde quase tudo se passa.
Vamos presenciar de uma maneira íntima as dificuldades que podem atrapalhar o rito de passagem da primeira infância para “a idade da razão”, na qual uma criança descobre o mundo através da capacidade de ler e passa a compreender a cultura em que vive para nela se inserir.
Yusuf tem 6 anos, é inteligente mas não consegue ler nem falar sem gaguejar muito. Interpretado por Boras Altas, um ator excepcional e muito bem dirigido, ele logo nos conquista
e ficamos tocados pelo seu amor incondicional por seu pai-heroi.
A cena inicial do filme vai nos preparando para nos identificarmos cada vez mais com uma criança sensível, para quem o mundo é o lugar mais escuro da floresta quando o pai não está com ele.
Trabalhando no alto da copa das árvores, Yakup, o pai, enfrenta o perigo, acompanhado pelo olhar admirado do filho Yusuf, que o ajuda a içar para cima os utensílios de que o pai necessita para o manejo das abelhas e a extração do mel. Seu rosto brilha e vemos pelos seus olhos a luz dourada filtrada pelas folhas verdes dos ramos mais altos da árvore. Um cenário idílico.
Mas acontece o acidente que antevíamos. O galho se quebra e o pai fica pendurado da árvore. Queda iminente? A floresta-mundo fica escura e aparece o terror de perder a quem se adora.
Os letreiros passam na tela e a gente fica cismando… O que aconteceu?
Parece que a vida continua porque, em seguida, presenciamos a uma das cenas-chave de “Um doce olhar”. O menino no colo do pai conta que teve um sonho:
“- Eu estava sentado sob uma árvore…”
“-Shhhh… Sussure no meu ouvido. Os sonhos não devem ser espalhados por aí“, diz o pai.
O menino passa a cochichar e não escutamos o que ele diz.
“-Não conte seus sonhos para ninguém”, recomenda o pai.
“Um doce olhar” é o terceiro filme de uma trilogia que não entrou em cartaz no Brasil. O primeiro filme é “Yumurta” (Ovo), que passou no Festival de Cannes em 2007 e conta a vida adulta de Yusuf. O segundo é “Sut” (Leite) que foi visto no Festival de Veneza em 2008 e narra a juventude do nosso menino de “Bal ”(Mel). O diretor contou a história de trás para a frente e parece que há uma intencionalidade nisso.
Luiz Carlos Merten que entrevistou Kapanoglu em Berlim, onde “Um doce olhar” ganhou o Urso de Ouro, conta no Estadão que perguntou-lhe se toda a trilogia não seria um sonho do menino Yusuf. Merten diz que o diretor sorriu e confirmou que havia feito “Um doce olhar” e toda a trilogia com essa intenção mas que “pouquíssima gente fazia essa viagem”.
Já que ficamos sabendo disso que tal assistir a “Um doce olhar”totalmente descompromissados com a realidade?
“A vida é sonho” é o titulo de uma peça de Calderon de La Barca.
Pois é. No lusco-fusco da floresta, um menino que tem horror a perder seu pai sonha com a vida. A árvore o envolve com suas raízes imensas e o sustenta para que siga em frente.
Esse menino vai aprender que não se pode agarrar o reflexo da lua na água… Mas que um ser adorado que partiu, continua vivendo no coração daquele que ama.
E, com uma menina maior que ele, aprenderá também que a poesia pode ajudar a entender a vida. Escutou os versos na escola e os repete sussurando:
“Noites azuis de verão,
Pelas veredas caminharei…”

Coco Chanel e Igor Stravinsky

“Coco Chanel e Igor Stravinsky”- França, 2010

Direção: Jan Kounen

Uma outra biografia de Chanel no cinema? Pois é, mas muito diferente das outras. Essa assume de cara a lenda, que é como Chanel contava as histórias que inventava sobre si mesma.

Porque se o filme “Coco e Igor” não é pura ficção, também não é inteiramente verdadeiro.

Jan Kounen, o holandês que assina a direção e o roteiro, inspirou-se no romance do inglês Chris Greenhalg de 2003, que mistura realidade e imaginação para contar um suposto caso entre a estilista mais marcante do século XX e o homem que revolucionou a música clássica, inspirando-se em motivos folclóricos russos.

Quando aconteceu a primeira apresentação da “Sagração da Primavera” ( “Le Sacre du Printemps”) em Paris, 1913, no Théâtre des Champs Elysées, dançada pelo “Ballets Russes” com coreografia do mais famoso bailarino do mundo, Vaslav Nijinsky, foi um escândalo. A burguesia da época não entendeu a proposta da nova linguagem da música e vaiou o compositor e os dançarinos. O tumulto foi tanto que a polícia teve que intervir.

Apenas ela, de branco, vestida à la Vionnet, guarda a compostura na platéia e vê-se curiosidade, quase aprovação, em seu rosto expressivo. Respira ao ritmo da orquestra.

Mademoiselle, como todos a chamavam, iria adorar a interpretação de Anna Mouglalis, longilínea, altiva e distante, qual ave rara em meio a um bando de gralhas. Em 1913, Chanel ainda não era quem viria a ser mas, tal Igor Stravinsky, era alguém que podia compreender o novo e admirar o fora do comum.

Sete anos mais tarde, depois da Primeira Grande Guerra, e da morte de Arthur “Boy” Capel, seu grande amor, ela é apresentada formalmente a Igor Stravinsky. O compositor estava exilado em Paris, sem dinheiro, com quatro filhos e a mulher Katia tuberculosa ( interpretada com doçura por Yelena Morosova).

“- Até de luto ela fica elegante”, diz alguém que a observa.

“- Foi o marido?”

“- Não. O amante. Boy. Um acidente trágico.”

Chanel havia se refugiado fora de Paris em sua casa Bel Respiro em Garches, após a morte de Boy. Mas era o casamento de uma de suas melhores amigas, Misia Sert, e ela fez uma exceção e apareceu por lá.

Já fascinada por Igor, Chanel encarna uma mecenas e convida o compositor a passar um tempo em sua casa para fazer modificações em sua “Sagração”. Convite feito e aceito, seguiram Chanel e a família Stravinsky para a Bel Respiro.

Um dos grandes acertos de Jan Kounen é causar um impacto estético no plano que mostra a casa, beje com janelas negras, em meio a um jardim requintado.

“- Eu nunca tinha visto uma casa com janelas negras…”, diz Katia, mulher de Igor.

E, guiados por sua anfitriã, acompanhamos os russos descobrindo, com estranheza, a beleza e a perfeição daquela casa art-decô, concebida como cenário para aquela mulher tão diferente de tudo o que conheciam.

“- Não gosta de cor, Madame?” pergunta Katia.

“-Só se for preto “ , retruca Chanel.

Será um curto espaço de tempo. Uma primavera e um verão. Mas o suficiente para que a atração existente entre aqueles dois se expressasse em uma sexualidade desprovida de afeto.

A câmara ronda os corpos brancos e mostra a agonia e o êxtase febrís. Há distância e proximidade mas nunca intimidade. Ela, um pássaro pernalta, pescoço longo e crista. Mais escamas que penas. Ele, homem severo, músculos treinados, olhar distante e sofrimento na alma.

“-É preciso se esquecer para se perder na música”, diz ele a ela.

Ela não fora feita para a languidez. Ele, pesado, unido à terra, era dotado de asas só no espírito.

Duas almas sensíveis e angustiadas. Dois gênios do século XX.

Ela compreendeu a música dele mas sua postura de vida não admitia que ele não a admirasse nem muito menos o seu machismo.

“- Eu sou tão poderosa quanto você, Igor. E tenho mais sucesso”, diz ela a ele.

“- Você não é artista, Coco. É uma vendedora de tecidos.”

Embate de egos.

Durante o tempo em que viveram em Garches ele trabalhou a sua “Sagração da Primavera”, que fez muito sucesso quando foi reapresentada. Ela, que já havia revolucionado o modo como as mulheres se vestiam, livrando-as dos espartilhos e apresentando-as ao jersey e a um modo feminino de vestir roupas masculinas, lançou o perfume Chanel Número 5, um dos ícones do mundo do consumo.

No filme, os figurinos executados por Chattoune Bourrec e Fabien Esnard-Lascombe, que contaram com a ajuda de Karl Lagerfeld, estilista à frente da Maison Chanel, são esplêndidos, inspirados nos desenhos de Chanel e revistas Vogue da época.

“Coco Chanel e Igor Stravinsky” é um filme requintado até nos mínimos detalhes. E tem atuações marcantes de Anna Mouglalis e Mads Mikkelsen.

Se você não sair correndo do cinema e esperar os letreiros finais, vai ver uma cena final tocante. Em preto e branco, em 1971, ano da morte de ambos, há um encontro de almas que não foi possível durante a vida terrena deles. Na essência haveria uma afinidade que não foi vivida…

A única prova tangível disso é o ícone dourado que Igor trouxera da Rússia e dera para Chanel e que ela conservou perto de si até o fim.

Um objeto sagrado para ele e para ela uma lembrança do encontro com o homem que a marcou? Pode ser. Ela nunca disse nada a ninguém sobre isso…