Oceanos

Oceanos – “Océans” França/ Suiça/ Espanha, 2009

Direção: Jacques Perrin e Jacques Cluzaud

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“Oceanos” não é mais um daqueles documentários tediosos que passam na TV e que estamos cansados de ver. Você vai se surpreender se vencer o pé-atrás.

Vamos mergulhar em abismos azuis, voar sobre praias brancas, nadar sobre rochas e corais e descobrir o mundo transparente debaixo do gelo. E o mais fascinante: vamos conhecer de muito perto o povo que habita as águas salgadas que cobrem grande parte do nosso planeta.

Câmeras mágicas, colocadas em lugares que a mente julga inacessíveis, mostram a intimidade dessas criaturas, enquanto que um olho maior vê, em macro, coisas inéditas.

E tudo isso porque uma criança, que nunca tinha visto o mar perguntou a Jacques Perrin, que é o coprodutor, codiretor, ator e também narrador do filme:

“-O que é o oceano?”

Ele diz com sobriedade:

“- E eu não soube responder…”

Por isso o filme “Oceanos” vai tentar mais que responder, explicar essa pergunta de forma visual, com imagens que você não vai esquecer fácilmente. Aliás, a maioria de nós nunca presenciou as cenas que vamos ver.

Levou 7 anos e foram necessárias 70 expedições a 50 lugares diferentes do planeta. Mas valeu a pena. O filme é uma maravilha.

Como uma contrapartida ao conhecido “Mundo do Silêncio” do lendário Jacques Cousteau e Louis Malle, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes de 1956, “Oceanos” traz para os nossos ouvidos os sons de um mundo movimentado.

O filme conta com a primorosa trilha musical de Bruno Coulais, que usa instrumentos, corais e ruídos do próprio lugar da filmagem, para compor um concerto que acompanha a ação e estimula sentimentos diversos na platéia. Assim, é um som eletrizante que evoca em nós o susto e o terror no vôo do tubarão branco que engole a foca no ar, uma melodia suave embala-nos na ternura quando a mamãe foca convida seu bebê para o primeiro mergulho ou ainda, um “fortíssimo” acompanha a emoção da aventura quando golfinhos e gaivotas disputam, palmo a palmo, as sardinhas em cardume, agitando as águas brancas de espuma.E tem muito mais.

Os técnicos usaram hidrofones para registrar o som local e registros sonoros de experimentos científicos foram acrescentados às imagens, sempre que era impossível fazer isso no tempo real.

O produto final é fascinante e, desde o mais ligeiro roçar de patas de um caranguejo, até o estrondo de uma tempestade em alto mar, entram em nosso ouvidos, virgens de tudo isso, como uma composição inebriante ouvida pela primeira vez.

Além de nos apresentar às águas dos mares e seus habitantes, ”Oceanos” tem a intenção de conscientizar os seres humanos sobre a importância da preservação da região aquosa de nosso território de vida. Pois a Terra é um ser vivo, Gaia, e nós fazemos parte dela.

Mas, assim como nunca descamba para o didatismo, apenas mostrando imagens sonorizadas, “Oceanos” não faz preleções sobre o respeito à natureza.

Mais forte do que qualquer discurso são as imagens que vemos de espécies já extintas, em um museu todo de mármore branco. Cemitério para bichos empalhados que não existem mais…

Jacques Perrin e seu neto caminham entre esses animais tornados estátuas inertes. Os olhos do menino indagam, mudos, ao seu avô o por que de todo esse massacre. Perrin não explica, apenas nos incentiva a pensar e a nos entristecer.

Visitamos com eles o maior aquário do mundo em Atlanta, EUA. O fundo do mar é simulado com talento. E a pergunta está no ar: no futuro veremos a população marinha só em aquários? E os oceanos? Estarão de tal forma poluídos e desertos que nos farão horror?

E antes que você se escandalize com a contradição de um filme tão ecológico orquestrar um massacre na cena da pesca de pesadelo, fique mais um pouco no cinema e veja a explicação nos créditos finais. Porque nenhum animal foi maltratado nesse filme. A cena dantesca, a que assistimos enojados, é uma encenação na qual até robôs foram usados.

Imprescindível para tocar o âmago da nossa alma e despertar a compaixão.

Vai ser bom se você sair do cinema encantado e disposto a ajudar o povo do mar a sobreviver.

Film Socialisme

“Film Socialisme”, França / Suiça, 2010

Direção: Jean- Luc Godard

Livre-se de seus preconceitos. Você não vai assistir a um filme com história, como está acostumado. Você vai ser sacudido da inércia habitual que nos acompanha ao cinema, para pensar, correr atrás de imagens, puxar da memória uma sequência e já ter que esquecê-la para acompanhar outra proposta. Incômodo e instigante.

E a ironia do destino é que quem nos propõe essa aventura é um senhor que acaba de completar 80 anos. Jean- Luc Godard, o francês fundador da “nouvelle vague”, o diretor de “Acossado”(1960) com Belmondo e Jean Seberg, de “Pierrot- le fou – O demônio das onze horas” e “Alphaville”(1965),”A Chinesa”(1967), “Je vous salue Marie”(1985- censurado no Brasil) e tantos outros.

Godard e o português Manuel de Oliveira, de 102 anos, com o seu magnífico “O sorriso de Angélica”, que acaba de passar na Mostra de SP, são, irônicamente, aqueles que propõem um novo cinema, cada um à sua maneira. Saudosismo português e enciclopedismo francês?

O certo é que todos os dois tem uma vantagem sobre nós. Viveram mais tempo, são europeus ligados a uma cultura sólida e testemunharam ao vivo os acontecimentos políticos que abalaram o século XX.

Ambos são pensadores, não meros cineastas.

“Film Socialisme” de Godard e “Um filme falado” de Manoel de Oliveira passam-se em um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Coincidência? Penso que não. Ambos vão nos fazer percorrer o caminho de antigas civilizações que aí floresceram, para pensar sobre a humanidade que virá e refletir sobre as questões ligadas à passagem do tempo.

Não podemos nos esquecer que esses dois diretores estão mais próximos da morte do que seus espectadores mais jovens, se tudo correr bem. E fazem como que uma espécie de balanço do que viveram e do que aprenderam sobre a humanidade. Um testamento em imagens e palavras.

“Film Socialisme” usa várias linguagens de comunicação visual e muitas línguas, nem sempre traduzidas (de propósito) nas legendas. Remete a um mundo caótico, no qual a ordem sistemática só existe na geometria, por exemplo, que é um dos temas das conversas entreouvidas na primeira parte do filme, que se passa no navio.

Enquanto os turistas em atitude bovina comem, bebem, dançam, fotografam, tudo filmado numa imagem de vídeo caseiro, cores saturadas e imagens borradas, há alguns que pensam, lêem livros e conversam sériamente.

Falam de capitalismo (“O dinheiro foi inventado para os homens não abrirem os olhos”), do abandono da África (“A Aids é um instrumento para matar os negros do continente”), justiça (“Tudo bem, guerra é guerra, mas um crime é ainda um crime”), os ingleses na Palestina, as Cruzadas (“Existiram para vingar Cristo”), Husserl, religião e ética (“Cada um pode agir como se Deus não existisse, mas o problema hoje em dia é que os safados são sinceros”), computadores, a Segunda Guerra (“Você sabia que kamikaze quer dizer divindade do vento?”), o ouro de Moscou e Stálin, socialismo (“O dinheiro é um bem público como a água”), Napoleão, Islã, e muito mais.

São associações livres que remetem a assuntos intermináveis. Godard com sua câmara como que faz uma reportagem de TV sobre os humanos. “En passant”, ou seja, sem se deter, nem aprofundar, como é a maioria das informações que nos chegam no mundo de hoje.

Os momentos de grande beleza continuam sendo, como desde sempre, a água do mar eterno com sua espuma branca, o por-do-sol deslumbrante, o ruído do vento captado pelo microfone de Godard, os tubarões que se alimentam dos cardumes na água azul. Permanência.

Na segunda parte (Quo Vadis Europa), a reportagem é sobre as crianças, os que herdarão e vão tentar lidar com os problemas que deixamos para eles. Apesar da aparente dissolução da família, aqui também há permanência, como na belíssima cena do menino que acaricia o corpo da mãe (o Complexo de Édipo, uma homenagem à psicanálise?)

Uma lhama andina e um burrico aparecem na garagem da família. Não são mais animais na natureza ou ajudando o homem a trabalhar. A máquina e o sintético os substituiu e agora só lhes resta ser bichos de estimação.

E na terceira parte, Godard faz um vôo supersônico sobre personagens e lugares míticos. Egito, pirâmides de Sakara, a deusa- gata Bastet, Núbis, o deus da morte (“O sol e a morte não podem ser encarados de frente.”) Escrita árabe e hebraica superpostas. O Muro das Lamentações. Uma coruja branca nos degraus de um templo encara a câmera (personificação da sabedoria de Hera ou companheira de Harry Potter?) Odessa (cenas do filme “Encouraçado Potenkin”). Grécia (“A democracia e a tragédia se casaram na Grécia com Sófocles. A guerra civil foi seu único filho.”) Anfiteatros greco-romanos em ruínas. Estátuas gregas (“Cassandra, por que querias tanto o dom da profecia?) Nápoles e cenas do fim da Segunda Guerra. Barcelona e as touradas.

No final aparece na tela o aviso do FBI contra a pirataria. E alguém diz:

“- Quando a lei não é justa, a justiça passa adiante da lei.”

Essa é uma das leituras possíveis de “Film Socialisme”. Só você indo ver para fazer a sua.